4 de jun. de 2009

Ao mestre, com carinho

Numa perspectiva filosófica, pode-se entender o medo como uma perda da potência humana. Perda da potência de agir. Uma indisposição crônica para viver. Nesse ponto, é fácil perceber que se trata de um sentimento que em muito se assemelha ao de tristeza.

Só há tristeza, no entanto, quando estamos diante de algo que, de fato, existe ou existiu; de algo que concretamente se faz presente nas nossas vidas. Ficamos tristes, por exemplo, quando não obtemos sucesso num objetivo ou quando perdemos um parente.

O medo não: ele sempre está baseado em uma hipótese, coerente ou não. Diante de um ladrão que aponta um revólver para a cabeça de um filho, a mãe não se amedronta pelo que está diante dela, mas pelo que pode vir a acontecer com o desdobrar dessa situação.

O medo, portanto, depende de uma suposição, nunca de um caso concreto e, por isso, fomenta as mais diversas paranoias e irracionalidades.


O medo e a organização do poder

Por essa sua característica, o medo foi largamente empregado, no discurso político, como estratégia de poder ao longo da história. Hobbes já dizia que, em função dele, deveríamos abrir mão de certas liberdades que o “estado natural” poderia nos oferecer para que pudéssemos viver com mais segurança. Afinal, sem restrições às condutas, o medo do caos imperaria, e isso é algo com que o ser humano não saberia lidar. 

Aqui mesmo no Brasil, volta e meia podemos perceber a utilização do medo como mecanismo de sedução política. Além da clássica peça “Eu tenho medo do Lula”, da campanha de 2002, Regina Duarte tem esta inacreditável (e cômica) pérola falaciosa a favor de Fernando Henrique, nas eleições municipais de SP de 1985:
 

A cultura do medo nos EUA


Principalmente após os atentados de 11 de setembro, já se tornou clichê discutir a “cultura do medo” como alicerce do desenvolvimento econômico e imperialista americano. Todos sabem que foi esse modo de pensar e agir um dos grandes responsáveis pela perspectiva etnocêntrica, preconceituosa e belicista que os EUA assumiram ao longo da história.

Também não é novidade mencionar a necessidade americana de encontrar um inimigo externo (ingleses, nazistas, comunistas, muçulmanos) ou interno (índios, negros, homossexuais, judeus) para dar vazão a paranoias, neuroses e obsessões, que, veiculadas pela imprensa, aumentam os índices de audiência e de visibilidade dos comerciais e propagandas, o que gera consumo e movimenta a economia. É o famoso tripé medo - ansiedade - consumo, tão querido pelo Tio Sam.

Aliás, quem nunca apontou a ironia que reside no fato de a tão propagada “Terra da Liberdade” aceitar restrições violentas aos direitos individuais em nome da “democracia”? Sem dúvida, o medo é uma política do governo estadunidense.

Enquanto isso, em São Sebastião do Rio de Janeiro


Sim, meus caros, sabemos que os ianques têm problemas sérios. A questão que se nos impõe é que esse lado perverso da cultura americana tem chegado com passos largos ao nosso querido Rio de Janeiro, graças à atuação do nosso governador-dublê-de-xerife-de-filme-de-faroeste.

Percebam que assistimos, principalmente nos últimos anos, a um impressionante recrudescimento da “democratização do medo”, fenômeno que, dentre outros efeitos, faz com que nos sintamos todos, sem exceção, reféns da violência.


 
Não há dúvida: estamos todos apavorados.

Afinal, vemos, a toda hora na imprensa, favelas fortemente armadas e perigosas (embora não paremos para refletir que, se 1% da população da Rocinha fosse composta por marginais, essa cidade já estaria na mão dos bandidos).

Vemos aviões que não são seguros (por mais que saibamos que se trata de um dos meios de transporte com menor taxa de acidentes no mundo).

Vemos gripes terríveis que podem ser contraídas a qualquer momento (mesmo que ninguém jamais tenha visto alguém com seus sintomas).

Vemos tecnologias nucleares sendo desenvolvidas por líderes de países fundamentalistas (apesar de não termos nenhuma certeza sobre o uso que se fará delas).

Claro que temos medo.

O sofrimento das pessoas está estampado nas chamadas televisivas e radiofônicas, nas manchetes jornalísticas, nos blogues e portais da internet. O globonline anteontem, motivado pela tragédia ocorrida com o voo 447, chegou a cometer o disparate de fazer com seus leitores uma enquete para eleger “os dez piores acidentes da história da aviação”! O resultado, tenho certeza, será deprimente, mas certamente válido para os anunciantes desses espaços.

Absorver essa avalanche de informações sobre violência e perigos “iminentes” é inútil. Inútil porque, obviamente, só reforça o clima de obsessão reinante e difunde ainda mais o medo, e não as soluções para os problemas reais da sociedade. 
   
Certo que há alternativas. Elas, entretanto, não são simples. É preciso cultivar, por exemplo, um processo de leitura que garanta espaço para o debate e para a análise crítica de todas as matérias, criando-se, assim, um hábito salutar de seleção de fontes. 

No livro "Cultura do Medo", que inspirou o filme "Tiros em Columbine", de Michael Moore, seu autor, Barry Glassner, diz, por exemplo, que, numa determinada fase da história americana, houve um aumento de 600% na quantidade de notícias sobre violência, enquanto as taxas de criminalidade caíram 20%.


Aqui no Brasil não é diferente: cada vez mais chegam às telas versões de programas como “Brasil Urgente” e genéricos, que exploram o medo como aliado da audiência. 
Se absorvermos tudo isso sem reflexão, estamos fadados a uma neurose coletiva sem precedentes na história. 


As consequências da paranoia

Estamos nos tornando essencialmente medrosos. Temos medo do desconhecido, o que é natural, mas temos medo também de conhecer. Nas nossas escolas, nos meios de comunicação e até nas famílias, o que se vê é a propagação da intolerância: não aprendemos a conviver com as diferenças. 

Em pesquisa do Instituto Futuro Brasil, de 2003, 89% dos entrevistados consideraram prudente "ficar sempre com o pé atrás" em relação aos outros. Como o espectro da insegurança é muito amplo, acabamos por eleger elementos visíveis para encarnar nossas neuroses e, com isso, ficamos com medo do garoto de rua, do favelado, do suburbano ou do filho da faxineira.
 

De nada adianta, por exemplo, uma campanha, como a que houve há alguns anos a favor do desarmamento, se não desarmarmos primeiro nossos espíritos e entendermos que o diferente não é nosso inimigo.

Por causa do medo, elegemos segurança como prioridade 1 dos nossos governantes.

Por causa do medo, precisamos de condomínios bem protegidos, equipes de segurança, carros mais seguros, celulares com ampla conexão (para que não soframos imprevistos).

Por causa do medo, apoiamos a política de confronto armado em comunidades carentes, aceitamos caveirões e torturas como armas de trabalho policial, incentivamos a construção de muros para isolar favelas e aplaudimos a atitude do Capitão Nascimento no já célebre “Tropa de Elite”.

Por causa do medo, compramos cada vez mais armas, somos mais e mais intolerantes, somos coniventes com desrespeitos aos direitos humanos, aceitamos cercear nossas liberdades.

Por causa do medo, estamos deixando de ser cariocas; estamos perdendo nossas características essenciais: a alegria, a potência de agir, a disposição crônica para viver.


Cabral e Giuliani

Por isso, a notícia de que o ex-prefeito de Nova Iorque (sim, eu aportugueso tudo mesmo), Rudolf Giuliani, aquele que entrou para a história dos EUA com sua “Política de Tolerância Zero”, visita o Rio de Janeiro e troca ideias com o Sérgio Cabral deixa-me, para dizer o mínimo, estomagado.



Por lá, Giuliani “passou a vassoura” e aumentou vertiginosamente a população carcerária. Com isso, ele elevou o Estado Penal à condição de monumento da contemporaneidade: a criminalidade e, no caso deles, o terrorismo foram alçados à condição de principais inimigos da ordem internacional. Muitos países e estados resolveram, a partir daí, adotar o modo Giuliani de administrar e passaram a eleger a segurança como prioridade fundamental de seus projetos políticos.

A despeito dos possíveis benefícios que alguém possa citar numa estratégia esdrúxula como essa, ter um Estado que prioriza a política de segurança, e não a social, é algo lastimável. Lastimável porque, insisto, ataca-se o fim, e não o fato gerador do processo.

Mas o Sérgio Cabral? Ah, ele está seguindo direitinho os passos do mestre Giuliani. E o que vai sair desse conluio sórdido a gente já pode antever.

Já mestre Drummond, esse um verdadeiro mestre, com a sensibilidade de quem consegue captar o espírito de todo um povo, construiu o poema "Morte do Leiteiro", que, dentre outros aspectos, reflete sobre as consequências do medo na nossa forma de enxergar o mundo. Ouça-o a seguir, na voz do próprio autor.

Quero deixar claro: não se trata de defender bandidos, mas de defender algo que é fundamental para uma vida sã: o direito de não ter medos impostos pelos outros. Só os meus.

8 comentários:

Diego Moreira disse...

Texto de referência! Antológico, meu camarada!

Abraço!

Luiz Antonio Simas disse...

Grande blog e ótimo texto. Vou colocar agora mesmo esse Primeiras Palavras no escrete canarinho do Histórias do Brasil.

Beijo

Cyro Pacheco disse...

Muito boa a sua análise. As pessoas não percebem como a preocupação com a segurança está se tornando uma histeria coletiva. Como terapeuta, lido com quadros de depressão motivacionados por questões como as que você levanta em seu texto.
Parabéns pelo blog

Zé Beto disse...

Os WASP´s estão chegando... Esse Sérgio Cabral é uma piada.

Ótimo alerta, excelente blog!

Passo a acompanhar!

Abraço!

Unknown disse...

Grande análise!

Hoje mesmo no Globo Online há uma matéria "excelente": CASAIS PRECAVIDOS VIAJAM SEPARADOS PARA NÃO DEIXAR FILHOS ÓRFÃOS.

Quanta paranoia, meu velho!

Filipe disse...

1 - DIEGÃO, meu amigo, valeu pela força de sempre! Abraço!

2 - CARECA, sentir-se aprovado pelo ídolo é um bom demais. E fazer parte do seu escrete canarinho é uma honra danada. Abraço forte!

3 - CYRO, essa histeria coletiva não pode mais ser fomentada! Valeu a visita!

4 - ZÉ BELO, o que tem de WASP por aí não é brincadeira. Mesmo sem ser White, nem Anglo-Saxon, nem Protestant. Obrigado pela visita!

5 - STEPHAN, valeu a contribuição! CASAIS PRECAVIDOS VIAJAM SEPARADOS PARA NÃO DEIXAR FILHOS ÓRFÃO é uma machete-cúmulo da paranoia! haha! Abraço!

Alex disse...

Gostei muito da abordagem, Filipão!Você é o cara! Não vamos deixar esse paranóicos tomarem conta da cidade! Abraço!

Filipe disse...

ALEX, a gente segura essa onda, amigo!
Abração!