6 de fev. de 2014

"O VELHO É DONO DO TEMPO, NÃO PÁRA NUNCA DE ANDAR"

No debate sobre a violência que, por motivos óbvios, instaurou-se esta semana, perguntaram-me se eu tenho alguma solução imediata ou mágica para essa questão.

Não, não tenho. 

Seria investimento em Educação a saída? Não sei... A que temos hoje não prepara, em geral, para isso: pessoas com acesso a altíssimo grau de instrução também operam crimes graves. Exemplifico e explico. 

O crime cometido por um pivete é grave, como também é grave a sonegação de impostos ou o suborno a agentes públicos, por exemplo. É que no primeiro caso, o do pivete, rouba-se algo; no segundo, deixa-se de dar algo ou ganha-se algo, indevidamente. 

A percepção do crime torna-se diferente: um é contra o indivíduo, outro contra a coletividade.

Eis aí "O" problemaço: a Educação de hoje, em geral, prepara o indivíduo para suprir necessidades subjetivas, não coletivas. É um tal de "meu pirão primeiro" que não acaba mais. O furto do pivete torna-se algo hediondo, mais grave que o desvio de merenda escolar, na percepção da vítima.

Então, seria investimento em Segurança a solução? A resposta também parece ser negativa. Em todas as áreas da cidade, mesmo naquelas em que o policiamento ostensivo é mais forte, ocorrem crimes. Em qualquer lugar do mundo, aliás, existem crimes, ainda que a Polícia atue fortemente. Há uma melhora considerável nos índices de criminalidade, quando a política de segurança incorpora elementos de cidadania, fazendo com que todas as pessoas tenham acesso a serviços que o dinheiro compra para os mais ricos.

Por isso, creio que só pode haver melhora, se houver uma mudança de visão de mundo, em que o coletivo se sobreponha ao individual, em que o culto ao "Deus Mercado" e a apologia da imagem e da cultura "vip"/aristocrática/nobiliárquica/hierárquica deixem de existir. 

A vida em sociedade, sem barbárie, só pode ser atingida assim: sem essa ideia perversa de que somos felizes se enriquecemos, seja como for; sem essa noção de que o simples é pouco e de que o certo é não ter tempo para nada; sem a obrigação de perambular como zumbi num ciclo vital que incorpora apenas casa-trabalho-casa; sem a ambição desmedida que acaba com a humanidade e com os recursos do planeta; sem a benevolência para os senhores e a fogueira para os vassalos, que se traduz em sensação de injustiça e de impunidade.

A maneira como abraçamos esses padrões comportamentais torna inviável a civilização. Por quê?, alguém me perguntará. Porque nosso estado é de guerra constante: contra o concorrente, contra o tempo, contra a simplicidade, contra quem pensa diferente.

E a guerra é o fracasso da humanidade. Por não acreditar na guerra, acredito na política, em amplo sentido: em negociações, em planejamentos, em objetivos, em cidadania, em divulgação cultural. 

Para isso, no entanto, é preciso tempo e vontade; é preciso um renascimento da própria consciência humana. Nada mágico ou imediato, portanto.

Minha percepção sobre essas questões em nada afeta a minha visão de que o rapaz-tema-da-semana, ainda que pobre, ainda que sem oportunidades, deve ser punido, sim. Mas nos termos da lei. Não façamos mais concessões ao estado de guerra que o mundo de hoje já nos impõe. 

E que isso não mascare que estamos tratando apenas as consequências, e não as causas do problema.

E que lutemos mais para viver numa sociedade em que as pessoas pensem segundo um novo modelo, como eu disse acima. Um novo modelo que nos aproxime, de nós mesmos e dos outros, tornando-nos mais reflexivos e participativos e transformando o "cidadão de bem" no "cidadão do bem comum".

Os passos são lentos, como os do velho citado no título deste texto. Mas, se contínuos, dominam o tempo e trazem a sabedoria do caminho percorrido. 

Aliás, esse título é trecho de uma música do grande Paulo César Pinheiro, gravada por Dona Glória Bonfim: "O mais velho". 

Sei que poucos conhecerão a referência; por isso, fica a sugestão: será que você tem tempo hoje pra ouvi-la e conhecer mais da arte e da beleza no mundo - humano - que nos cerca? ;-))


http://www.radio.uol.com.br/#/letras-e-musicas/gloria-bomfim/o-mais-velho/2502405

Beijos e abraços

18 de out. de 2013

Vinicius - meu poeta, meu amor

Tenho alguns ídolos na vida. Pessoas cuja contribuição humanística ultrapassa o utilitarismo de um invento ou a perfeição maquinal. Meus ídolos são gente de verdade, com qualidades e defeitos. 

Sou, por exemplo, fã incondicional de Vinicius de Moraes, que neste 19 de outubro completa(ria) cem anos. 

Viveu como poeta, e transformou em beleza (músicas, peças, poemas, contos, crônicas) tantas e tantas dores da vida. A mim, ele me ensinou muito. 

Ensinou-me que ser imortal é diferente de ser infinito; e ensinou-me que fidelidade não se cobra: conquista-se, cuida-se, admira-se. 

Ensinou-me que amores podem ser estranhos, desassombrados, doidos, delirantes; mas também que a vida só se dá pra quem se deu (pra quem amou, pra quem chorou, pra quem sofreu). 

Ensinou-me que o homem que diz 'vou' não vai; e que quem de dentro de si não sai vai morrer sem amar ninguém. 

Mas Vinicius me falou muito mais. Ele também ajudou a construir as minhas primeiras impressões ideológicas, sociais e políticas. Lembro-me do assombro que me tomou quando, ainda moleque, li um trecho de seu Operário em Construção, que ainda hoje trago no peito: 

"Mas o que via o operário o patrão nunca veria. O operário via as casas e dentro das estruturas via coisas, objetos, produtos, manufaturas. Via tudo o que fazia o lucro do seu patrão. E em cada coisa que via misteriosamente havia a marca de sua mão. E o operário disse: Não! - Loucura! - gritou o patrão, não vês o que te dou eu? - Mentira! - disse o operário, não podes dar-me o que é meu". 

Meu poeta maior também me fez pensar na brasilidade que carrego, me fez ter orgulho dela. Aprendi com ele que só se é livre quando se liberta, e que se há alguém oprimido, estamos todos oprimidos: 

"Mais do que a mais garrida a minha pátria tem uma quentura, um querer bem, um bem, um 'libertas quae sera tamen' que um dia traduzi num exame escrito: "Liberta que serás também". E repito!" 

Vinicius, o branco mais preto do Brasil, na linha direta de Xangô, homem sem medo de assumir sua africanidade, ainda que vivêssemos (vivêssemos?) num mundo tão intolerante em relação às crenças e não crenças. Homem que, com Baden Powell, produziu uma das obras mais lindas já concebidas pelo gênio humano: os afro-sambas. 

Homem que talvez não tivesse espaço neste mundo corpólatra das dietas e das academias, neste mundo da utilidade e do interesse, neste mundo do politicamente correto e dos julgamentos prévios, neste mundo tão mudo, mesmo com tanta coisa sendo dita todo dia. 

"São demais os perigos dessa vida/ para quem tem paixão, principalmente / quando uma lua surge de repente/ e se deixa no céu, como esquecida." 

Essa lua me pegou, poetinha. E que a vida continue perigosa sempre, como você ensinou que deve ser. 

Saravá!

14 de out. de 2013

Pelo Dia dos Mestres

Definitivamente, não é fácil ser professor.

Ao entrar em sala, a quase totalidade dos alunos não quer saber se você teve uma noite difícil, se alguém na sua família está doente, se você perdeu um parente, se aquela dívida já está batendo à porta, se o trabalho fora de sala (sim, ele existe e ocupa a maior parte do tempo de um bom professor) exigiu mais que o costumeiro, se seu casamento passa por uma fase complicada.

O educador - crê-se - está lá pra fazer com que todos aprendam os tópicos planejados, da melhor maneira possível. Sorrindo. E, mesmo dando o máximo de si, vai haver os que não conseguirão perceber esse esforço e que dirão vez ou outra: "Ih, ele está estressado... A mulher dele deve ter dormido de calça jeans esta noite..." ou "A aula hoje não tá engraçada... Ele não é mais o mesmo..."

Estar exposto ao julgamento de centenas pessoas toda semana é muito difícil. Basta uma frase descontextualizada para que se teçam considerações sobre seu caráter, sobre sua personalidade. Há muitas injustiças a que sequer podemos responder, porque as desconhecemos.

Mas, então, vale a pena ser professor? Claro que vale. A despeito de todos os obstáculos, não há sensação melhor, para mim, do que poder fazer alguém sair transformado de uma aula. Sempre é possível fazer alguém rir ou chorar, entendendo melhor a si mesmo e ao mundo; é possível fazer alguém ganhar mais consciência social e crítica; é possível fazer alguém saber ler melhor, escrever melhor. Sempre é possível fazer com que pessoas cheguem mais perto dos seus sonhos, preparadas para enfrentar o mundo do jeito que ele é. Sempre é possível mostrar o que pode (e deve) ser conservado e o que pode ser transformado na nossa sociedade. Por isso, cada aluno é fundamental para todo professor.

Num dos meus primeiros anos de magistério, uma aluna do primeiro ano do ensino médio me perguntou: "Professor, você trabalha em quê?"

Achei muita graça na pergunta, brinquei, mas ela me fez pensar bastante. Afinal, qual meu trabalho como professor? Ao final da aula, respondi a ela algo como: "Trabalho em fazer com que as pessoas sejam mais responsáveis consigo mesmas e com os outros, com que estejam preparadas para o mundo, com que sejam livres para pensar."

E, por isso, tantas e tantas vezes fico triste quando uma aula acaba. Por mim, falaria mais, debateria mais, daria novos pontos de vista, contaria tudo que já aprendi. Felicidade também é isto: não querer que um momento acabe.

Agradeço a meus professores e a meus colegas de profissão por terem moldado meu caráter, por terem me ensinado como aprender, por me mostrarem a importância da curiosidade e do respeito.

Agradeço a todos os meus (ex-)alunos (já disse aqui que professor não é ser transitório na vida de ninguém: uma vez professor, sempre professor) por me darem a oportunidade de fazer aquilo que me dá mais prazer na vida.

Feliz Dia dos Mestres.

4 de jan. de 2011

Felicidade, voz e cultura

Uma das reflexões filosóficas mais antigas e mais importantes da civilização ocidental é a que pondera sobre qual seria a melhor forma de viver.

Já em A República, Platão explicava que, ao ser inquirido por um interlocutor sobre essa questão, Sócrates dizia ser impossível a ele determinar um conjunto de ações que conduzissem um outro homem a um estado de felicidade. O filósofo só concebia positividade na vida, se ela fosse livremente determinada pelo próprio indivíduo, e não por outro. Isso não significa, entretanto, que seja a liberdade a chave para a felicidade, pois se só tivéssemos como opção sermos livres, estaríamos contradizendo a premissa inicial. Não é, portanto, a liberdade em si a razão da felicidade, mas a livre determinação da vida.

Diante de uma instância coercitiva - seja "positiva", seja "negativa" - o homem não é pleno de si mesmo. Não é feliz, por esse raciocínio, o faminto que pensa em roubar um pão, mas não o faz, antes por temer ser flagrado que por acreditar que assim a vida em comunidade será melhor para ele e para todos.


Desenvolvendo esse tópico em seu célebre Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, Jean-Jaques Rousseau imprime novas tintas à discussão e tece uma das mais seguras reflexões sobre a origem do desconforto humano consigo mesmo. Explica o mestre que, dentre todos os seres vivos, o homem é o único que não se satisfaz com sua própria natureza.

"Não vejo em todo animal senão uma máquina engenhosa, à qual a natureza deu sentidos para prover-se ela mesma, e para se preservar, até certo ponto, de tudo o que tende a destruí-la ou perturbá-la. Percebo precisamente as mesmas coisas na máquina humana, com a diferença de que só a natureza faz tudo nas operações do animal, ao passo que o homem concorre para as suas na qualidade de agente livre. Um escolhe ou rejeita por instinto, o outro por um ato de liberdade, o que faz com que o animal não possa afastar-se da regra que lhe é prescrita, mesmo quando lhe fosse vantajoso fazê-lo, e que o homem dela se afaste freqüentemente em seu prejuízo. É assim que um pombo morre de fome perto de uma vasilha cheia das melhores carnes, e um gato sobre uma porção de frutas ou de grãos, embora ambos pudessem nutrir-se com os alimentos que desdenham, se procurassem experimentá-lo; é assim que os homens dissolutos se entregam a excessos que lhes ocasionam a febre e a morte, porque o espírito deprava os sentidos, e a vontade fala ainda quando a natureza se cala."

Com o objetivo de sustentar indutivamente seu raciocínio, Rousseau cita o pombo e o gato - como metonímias de todos os animais - para esclarecer que, em toda a natureza, o instinto basta para que o vivente fique em paz consigo mesmo. Um gato jamais precisará de outra faculdade, a não ser aquelas que instintivamente já possui, para exercer plenamente a sua vida felina. Mais: um gato não busca nada além daquilo que já está presente em sua própria natureza para viver, para se relacionar com o mundo.

O homem, de outra forma, embora também seja dotado de instintos humanos, transcende-os para satisfazer as suas necessidades existenciais. É o “ato de liberdade”, citado pelo filósofo, que faz um homem, muitas vezes, rejeitar algo que, por natureza, ser-lhe-ia útil e, outras vezes, desejar algo que nada lhe acrescentaria na prática.

"Todo animal tem idéias, pois tem sentidos; combina mesmo as idéias até certo ponto: e, sob esse aspecto, o homem só difere do animal do mais ao menos; alguns filósofos chegaram a avançar que há mais diferença entre um homem e outro do que entre um homem e um animal. Não é, pois, tanto o entendimento que estabelece entre os animais a distinção específica do homem como sua qualidade de agente livre. A natureza manda em todo animal, e a besta obedece. O homem experimenta a mesma impressão, mas se reconhece livre de aquiescer ou de resistir; e é sobretudo na consciência dessa liberdade que se mostra a espiritualidade de sua alma; porque a física explica de certa maneira o mecanismo dos sentidos e a formação das idéias; mas, no poder de querer, ou melhor, de escolher, e no sentimento desse poder, só se encontram atos puramente espirituais, dos quais nada se pode explicar pelas leis da mecânica."

Clara razão para esse comportamento - exclusivamente humano, segundo Rousseau - seria o evento histórico da comunicação, a partir da vida em comunidade. Isso teria incutido em nossos espíritos a ideia de perfectabilidade, de necessário aperfeiçoamento, o que, paradoxalmente, teria originado determinados vícios morais, como a inveja e a vaidade, característicos da vida em sociedade.

"Adquire-se o hábito de se reunir diante das cabanas ou em torno de uma grande árvore: o canto e a dança, verdadeiros filhos do amor e da ociosidade, tornam-se divertimento, ou antes, ocupação dos homens e das mulheres ociosos e agrupados. Cada um começa a olhar os outros e a querer ser olhado por sua vez, e a estima pública tem um preço. Aquele que canta ou dança melhor, o mais belo, o mais forte, o mais destro ou o mais eloqüente, torna-se o mais considerado. E foi esse o primeiro passo para a desigualdade e para o vício, ao mesmo tempo: dessas primeiras preferências nasceram, de um lado, a vaidade e o desprezo e, de outro, a vergonha e a inveja; e a fermentação causada por esses novos fermentos produziu, enfim, compostos funestos à felicidade e à inocência."

O homem, portanto, ao trocar experiências com outros homens, desperta o que há de melhor e o que há de pior em sua própria essência. Diante disso, como seria viável uma vida em comunidade que pudesse nos levar a ser, simultaneamente, produtivos, seguros e felizes?

Se é verdade que a livre determinação da vida é elemento desejável no perfil de um homem ideal, também é verdade que a vida em comunidade permitiu que houvesse trocas de conhecimento e de experiências, a fim de que determinados erros cometidos por uma geração não precisem ser repetidos pela próxima, a fim de que determinados acertos possam ser perpetuados.

Embora haja visíveis exceções, é possível reconhecermos alguns traços psicológicos e comportamentais que são passados - ora de forma mais enfática, ora de forma mais tênue - de geração a geração, como forma de garantir uma vida harmônica. Esses traços, que podemos chamar de ética ou de moral, compõem a tradição de uma determinada comunidade. São suas raízes, suas referências, seu jeito de ser, que pode ser ponderado, mas jamais esquecido. O conhecimento da própria história torna-se algo fundamental para uma vida feliz, seja para negar certos valores, seja para confirmá-los.

O que se vê, no entanto, nos dias de hoje, é o desejo compulsivo pelo consumo de fórmulas de felicidade. Livros de auto-ajuda oferecem, em lições condensadas, as receitas para o sucesso profissional ou para a realização amorosa; as tevês anunciam produtos que garantem a satisfação pessoal e exibem corpos que devem ser copiados, para que sejam cobiçados; a indústria farmacêutica vende, como nunca, remédios contra a depressão e a ansiedade: lembremos que o Rivotril é o segundo medicamento mais consumido no país.


Millôr Fernandes, num de seus famosos aforismos, diz: "Parece mesmo que a maior aspiração do povo é a liberdade de se deixar mandar". De fato, o filme A vida de Brian, do grupo inglês Monty Python, traz um exemplo claro disso. Brian é confundido com o messias e intimado pela multidão de fiéis a ensinar-lhes a "verdade". Ele diz, então, ao povo: “Vocês precisam pensar por si mesmos. Vocês são todos indivíduos!”, ao que a multidão responde em coro: “Sim, somos todos indivíduos”. Em seguida, Brian insiste “Vocês são todos diferentes!” e, mais uma vez, em coro, a multidão replica: “Sim, somos todos diferentes!”. Veja a cena do "Paradoxo de Brian", em inglês:


Diz-nos Sérgio Buarque de Hollanda, em seu aclamado Raízes do Brasil, que, muitas vezes, sentimo-nos “desterrados em nossa própria terra”. Talvez por imposição das influências coloniais, nosso percurso histórico, segundo o ensaísta, evidenciaria a falta de elementos que nos identificassem, nos aclarassem, nos definissem frente a nós mesmos como membros de uma mesma comunidade. Manuel Bandeira, numa crônica intitulada “Mário de Andrade”, dá a exata medida desse complexo processo:

"Negras e cidades no Brasil são temas exóticos. Mesmo nos brasileiros. Uma coisa cacête nas nossas tentativas de assuntos nacionais é que os tratamos como se fôssemos estrangeiros: não são exóticos para nós e nós os exotizamos. Falamos de certas coisas brasileiras como se as estivéssemos vendo pela primeira vez, de sorte que, em vez de exprimirmos o que há nelas de mais profundo, isto é, de mais cotidiano, ficamos nas exterioridades puramente sensuais."

Em outra crônica, “Poesia do Sertão”, Bandeira cita o mesmo problema, criticando a produção literária nacional, que tentava aproveitar o folclore:

"A qualidade mais preciosa da arte popular é a ingenuidade e no entanto tôda essa nossa poesia de inspiração nacional carece de ingenuidade"

A falta de ingenuidade decorreria da falta de ligação, de identidade, entre o autor e a realidade liricizada. Sintoma de desenraizamento. Falando do poeta do sertão, Catulo da Paixão Cearense, diz-nos Bandeira:

"Catulo da Paixão Cearense? É sem dúvida um poetão, (...). Mas é tão da cidade quanto nós outros. Não se confunde com o sertão.É um sertão de saudade o seu. Um sertão muito saído de vocábulos regionais."

E demonstrando a dificuldade de aceitação desse seu pensamento, o poeta, na mesma crônica, cita o caso de Ascenso Ferreira:

"Uma meia dúzia dos seus poemas tinham (sic) bem aquêle sabor da obra de arte em que o autor se confunde com o assunto.(...) Fiz o possível para inspirar ao autor de Catimbó (Ascenso Ferreira) o gôsto de ser o poeta de Palmares. (...) Mas logo da primeira vez (que quis apresentá-lo assim) o autor do Catimbó me chamou de parte e me fêz sentir que eu estava fazendo com ele uma pilhéria de mau gôsto. Ascenso fazia questão fechada de ser um poeta culto"

Essa "questão de ser culto" parece ser na opinião de Bandeira o grande entrave à nossa necessidade de autodescoberta. No Prefácio às Cartas de Mário de Andrade a Manuel Bandeira, ele no diz:

"Sempre fui partidário do abrasileiramento do nosso português literário, de sorte que aceitava em princípio a iniciativa de Mário. Mas discordava dêle profundamente na sua sistematização, que me parecia indiscretamente pessoal, resultando numa construção cerebrina, que não era a língua de ninguém. Eu não podia compreender como alguém, cujo principal fito era ´funcionar socialmente dentro de uma nacionalidade´ se deixava levar, por espírito de sistema, a escrever uma língua artificialíssima (...)"

Também Alfredo Bosi tangencia esse tópico na importante palestra Cultura como Tradição. Citando ensinamentos apreendidos com o professor Oswaldo Elias Xidieh, diz-nos o ensaísta que a cultura popular deve estar com o povo. Quanto menor a influência do Estado no folclore, maior será a presença das legítimas tradições. Eis o drama para Bandeira: nossos eruditos tentam se apropriar do que é mais externo da cultura popular, não do que é interno. Buscamos o sensual, e não o íntimo. Seja no retrato, seja no tema, seja na linguagem, não nos identificamos plenamente com a brasilidade que se pretende expor. É como se fôssemos intelectualizar o que não pode, nem deve ser intelectualizado.

Diante, pois, do momento pós-moderno, alienante e alienado, individualista e narcisista, o topos acima descrito ganha extrema relevância. O homem vem deixando, gradualmente, de ser a fonte individual do sentido ou da ação diante do mundo. De fato, a evolução do capitalismo demonstra que a experiência humana é antes garantia de caos que de equilíbrio ou garantia de sentido. A base empírica do conceito positivista de conhecimento, isto é, a confiança na observação e na experimentação, típica do século XIX, vem sendo cada vez mais questionada.

Um exemplo claro disso, ainda segundo o professor Alfredo Bosi, é que hoje o indivíduo projeta a quantidade/ qualidade de cultura de uma pessoa na quantidade/ qualidade de livros, por exemplo, que ela possui, nos simulacros desse saber. O indivíduo parece não se importar muito com a reflexão que se faz sobre a leitura deles.



Se a tendência da sociedade contemporânea é o agora, é a lógica do consumo, é a valorização do simulacro, em vez da experiência concreta, é a decadência dos grandes ideais, dos grandes valores e das instituições, é a criação indivíduos sem história, programados e solitários, então o problema do desenraizamento fica potencializado.

O quadro que se expõe à análise não é dos mais simples: à necessidade de comunicação, de conhecimento da própria terra, de sua própria humanidade contrapõe-se a deterioração do valor das trocas de experiência, em virtude do mundo caótico em que se vive.

Nas considerações sobre a obra de Nicolai Leskov, Walter Benjamin aponta que esse processo de deterioração do conhecimento coletivo, referido anteriormente, é uma das marcas da sociedade formada após as guerras mundiais do século XX. Com elas, tornou-se manifesto um processo que continua até hoje. No final da guerra, observou-se que os combatentes voltavam mudos do campo de batalha não mais ricos, e sim mais pobres em experiência comunicável. E o que se difundiu dez anos depois, na enxurrada de livros sobre a guerra, nada tinha em comum com uma experiência transmitida de boca em boca.



Parece claro, portanto, que uma forma eficiente de combater o estado de anomia, de desenraizamento, de mudez do ser humano, é recuperar-lhe voz e ouvidos, trazendo-o de volta à sua legítima tradição oral. Saber ler, ouvir e ver seus pares é, sobretudo, refletir sobre si mesmo. Um ato menos de altruísmo que de autoconhecimento.

E esse trabalho será tão mais fértil, quanto mais cedo iniciado.

20 de nov. de 2010

Quilombos às avessas

Se me permitem o clichê, é preciso mais que o tempo para apagar as manchas que séculos e séculos de escravidão deixaram na nossa gente. O preconceito determinista e o pensamento nobiliárquico/aristocrático ainda têm pesada voz em muitos círculos, abastados ou não, da nossa sociedade.

O resultado disso é que permanece, nos nossos dias, um processo medonho de "embranquecimento" da nossa gente; um preconceito que não só incita, por exemplo, a ridicularização das manifestações musicais e religiosas do povo negro e ameríndio, mas também, quando muito, a absorção superficial da sua influência na nossa cultura. Explico.

O Brasil, para muitas pessoas, não é uma nação, uma raiz; é apenas uma circunstância, um triste acaso do destino. Tudo aqui lhes é exótico. Muitos há que "toleram" o samba e o candomblé, para citar casos comuns, mas se posicionam diante dessas manifestações como turistas que se veem num safári. Vão a uma noite de samba no Salgueiro ou a um terreiro e acham que merecem uma medalha de bravura por isso. São capazes de "achar lindo o toque daquele tambor e aquelas moças todas dançando", mas se colocam numa posição de distanciamento e superioridade, típica de quem detém exclusivamente o saber formal das músicas eruditas de Mozart, das epopeias de Homero, das pinturas de Caravaggio e "curte o som das melhores casas noturnas de Ibiza". São os desterrados em sua própria terra; são os que sonham morar em Paris ou Miami; são os que criam núcleos de resistência em condomínios e shoppings, numa espécie de quilombo às avessas. Estão neste país permanentemente de férias, esperando uma europeização que, para eles, tem que vir, e há de vir.

Quero deixar claro que este texto não busca fazer uma simplista apologia da cultura popular, em detrimento da erudita (ou, em outra visão, da verdadeira cultura nacional, em detrimento de estrangeira). Este texto busca demonstrar que não se pode encarar uma como oficial, outra como marginal; uma como desejável, outra como tolerável (quando muito). É no Brasil preto, índio, branco e imigrante que vivemos e, por isso, não adianta consumirmos apenas o que vem de fora para nos esclarecermos diante de nós mesmos. É preciso conhecer e respeitar esse Brasil de verdade para encontrarmos paz.

Certo é, meus caros, que gostos variam e que afinidades se criam, e por conta disso é perfeitamente possível gostar mais de uma fuga de Bach que de um choro de Pixinguinha, ou mais de uma canção dos Beatles que de um samba de Candeia. O que não se pode é desprezar legítimas manifestações culturais ou pensar que elas devem se circunscrever a determinados grupos.


Vejo com temor algumas pessoas ainda proclamando que não existe preconceito no Brasil, e outras acreditando nisso. Pior: pessoas achando ridículo existir um dia da consciência negra, sob a alegação de que isso sim é que cria o preconceito. Pois bem, numa rápida busca no Twitter pelo termo "Umbanda", encontrei ataques e deboches inúmeros. Encontrei também, por exemplo, o seguinte: "ah não, ah não, ah não, o 'fulano' é da Umbanda... =/ Nada contra, mas é que eu amo ele, quero o bem dele...". Esse "nada contra" do texto dela é perigosíssimo, porque, na verdade, o que se está dizendo é "tolero crenças diferentes das minhas, desde que eu e aqueles com quem me importo não tenhamos que nos relacionar diretamente com elas". Essa pessoa talvez não saiba que é preconceituosa. Mas é. Muito. Extrapolando o exemplo: são pessoas assim que acham normalíssimo e democrático construir muros para isolar as favelas (não pagam iptu mesmo) e cobrar fortunas para entrar em estádios de futebol (ora, não tem lugar pra todo mundo). São pessoas assim que, em breve, vão lutar para que o carnaval do Rio de Janeiro seja feito com abadás (ninguém quer ficar no calor, longe do bloco, né?). Sobre esse tema, sugiro excelente texto de Luiz Antonio Simas: A síndrome de Neuendorf e a direita raivosa.

Tive a sorte de ser criado para entender que as palavras de um preto-velho eram tão importantes quanto as de um professor em sala de aula. E foi um desses guias que uma vez me ensinou que há beleza nas coisas simples, que há beleza até na tristeza, mas não há nenhuma na raiva, no ódio; me ensinou que caráter não se mede em livros, mas que eles também são importantes para nos ajudar a pensar o mundo, as pessoas e, com isso, buscar uma vida mais leve; me ensinou curimbas que marejaram meus olhos, como Dante e Beatrice um dia também o fizeram; me ensinou que nem sempre pedra é pedra e que mesmo a miudinha pode ser imensa. Sabedoria imensa.

De minha parte, portanto, cabe sempre lutar para que as minhas raízes sejam preservadas, difundidas e respeitadas. Tenho, no coração, meu pai Oxóssi de mãos dadas com Fernando Pessoa e garanto: desse conluio só consegui extrair coisas boas. Meu coração é também preto, como em verdade é o de todo brasileiro. Como me disse uma vez mestre Simas: "somos homens de bem, e não temos vergonha do nosso povo".

Neste dia de Zumbi, convite à reflexão, termino este arrazoado com as sábias palavras do grande Solano Trindade, poeta negro, poeta do povo brasileiro, dos grandes da nossa raça: "Quem me ouvir, ouça!"

Apesar de tudo que tenho ouvido e lido sobre poesia, resultado das teses e debates nos congressos de poetas e críticos - não me sinto disposto a mudar de linha, de sair do caminho popular de minha poética.

Sem querer discutir o valor dos herméticos “concretistas”, “neo-concretistas”, “dadaístas”, etc (eruditos donos da cultura ocidental), prefiro levar ao meu povo uma mensagem, em linguagem simples, em vez de uma mensagem cifrada para um grupo de intelectuais.

Tenho pelos homens de cultura uma grande simpatia, sejam modernos ou acadêmicos; tenho aprendido muito com todos eles, através dos seus livros e das suas conversas, porém, a minha poesia continuará com o estilo do nosso populário, buscando no negro o ritmo, no povo em geral, as reivindicações sociais e políticas, e nas mulheres, em particular o Amor.

Agradam-me profundamente os títulos de “poeta negro”, “poeta do povo”, “poeta popular”, às vezes ditos de modo depreciativo - mas que me dão uma consciência exata do meu papel de poeta na defesa das tradições culturais do meu povo, na luta por um mundo melhor. Unir o Universal ao Regional, num poema participante ou amoroso, num verso de protesto ou ternura - mas em palavras bem compreensíveis.

Quem me ouvir, ouça.
Eu canto aos Palmares
sem inveja de Virgílio, de Homero e de Camões
porque o meu canto é o grito de uma raça
em plena luta pela liberdade!

(Solano Trindade. São Paulo, julho de 1961)


13 de out. de 2010

Interlúdio

Nos próximos dias, não devo conseguir escrever nada por aqui. Nesse breve interlúdio, deixo, traduzido em vídeo, o poema "Dance, monkeys, dance!", do americano Ernest Cline

Em tempos de intolerância religiosa, política e social, vale muito pensar uns bons minutos nele. 

Abraços!

11 de set. de 2010

A luta pela tolerância religiosa





Senhores Deputados,

Foi com profunda preocupação que recebi a notícia de que  o Deputado e pastor evangélico Edson Albertassi, membro dessa casa, apresentou um projeto com o objetivo de anular a lei que declara a Umbanda e o Candomblé bens imateriais do Estado do Rio de Janeiro. O mesmo parlamentar tem, sistematicamente, apresentado projetos de lei que atacam frontalmente as crenças afro-brasileiras e ameríndias em nome do que ele mesmo chama de conduta cristã.

Em um contexto em que demonstrações de intolerância religiosa se tornam cada vez mais costumeiras, a proposta do cruzado-legislador com sede de guerra santa se configura como ameaça aos princípios da tolerância e do respeito às diferenças, elementos básicos para o convívio fraterno da comunidade.

Certa feita escrevi um texto sobre a religiosidade brasileira e a relação de nosso povo com as divindades. Cito alguns trechos, nesse momento em que nossos ritos sofrem toda sorte de ataques, do que então expressei:

"Somos, os brasileiros,  filhos do mais improvável dos casamentos, entre o meu compadre Exu e a Senhora Aparecida - a prova maior de que o amor funciona. E Tupã, que se vestiu com o cocar mais bonito para a ocasião, celebrou a cerimônia entre a cachaça e a água benta.

Uma das nossas mãos está calejada pelo contato com a corda santa do Círio de Nazaré - a outra tem os calos gerados pelo couro do atabaque que evoca as entidades. As mãos do Brasil e do seu povo.

Nossos ancestrais passeiam pela vastidão da praia sagrada dos índios de Morená, retornam à Aruanda nas noites de lua cheia, silenciam no Orum misterioso das almas e florescem encantados nas folhas da Jurema.

Os guerreiros de nossas tropas trazem a bandeira do Humaitá, o escudo de Ogum e o estandarte da pomba branca do Divino Espírito Santo - a mesma pomba que pousou na ponta do opaxorô de Obatalá. São essas as nossas divisas de guerra e paz; exércitos do Brasil."

Escrevi isso porque, senhores deputados, nasci e cresci dentro de um terreiro de macumba. Falo dessa procedência com orgulho tremendo. Minha avó era mãe de santo na Baixada Fluminense do Rio de Janeiro, versada nos segredos da jurema e da encantaria. Fui, por isso mesmo, batizado nos conformes da curimba - protegido pelo caboclo Pery e pelo Exu Tranca Rua das Almas e oferecido aos cuidados da lua velha, num terreiro grande de Nova Iguaçu.

Tive uma infância alumiada pelo rufar dos tambores brasileiros e pelo alumbramento com os caboclos de pena e os marujos e boiadeiros da minha macaia querida. Quem viu, viu - e sabe do que eu falo.

Em um certo momento busquei as raízes mais profundas. Fui ao candomblé, me iniciei, recebi um cargo, cantei em iorubá e conheci a religiosidade afro-caribenha. Em meu peito, todavia, continuou batendo forte a virada dos caboclos do Brasil. De mim, que atravessei o mar só para ver a juremeira, isso ninguém tira !

Conversei com Seu Zé; recebi conselhos de Seu Tranca Ruas; vi a dança de guerra de Seu Tupinambá; fui seduzido pela beleza de Mariana e pela saudade de seu navio; temi a presença de Seu Caveira; cantei a delicadeza da pedrinha miudinha; respeitei o cachimbo velho de Pai Joaquim; me emocionei quando Cambinda estremeceu para segurar o touro bravo e amarrar o bicho no mourão do tempo.

É por isso, pelo meu encanto pela Mãe d´Água, pelo temor amoroso ao caboclo Japetequara - veterano bugre do Humaitá - pela reverência aos que correram gira pelo norte, que me emociono com os santos brasileiros, pretos e índios como nós - por amor ao Brasil ! Amor bonito e dedicado, feito o cocar de Sete Flechas e o diadema de Seu Sucuri no limiar das luas.

É por tudo isso ainda, senhores, que afirmo: Não queremos converter e não queremos ser convertidos. Queremos crer apenas que o Pai maior, em Sua sabedoria, revelou-se a cada povo trajando a roupa que lhe pareceu mais conveniente para que os homens o reconhecessem, feito Zambiapungo e Olorum nos infinitos e Tupã nas matas. 

Os deuses que vieram dos porões dos tumbeiros e das florestas do Brasil  amenizaram séculos de dor e sofrimento e forjaram a armadura da resistência e da dignidade de um povo. Os deuses do Brasil nos ensinaram a olhar a natureza com os contornos da poesia e a delicadeza dos ritos imemoriais. Essa é a tessitura nossa de olhar o mundo.

Divinizamos os homens e humanizamos os deuses para construir uma civilização amorosa nos confins do ocidente. Em nome do oxê de Xangô, do pilão de Oxaguiã, do xaxará de Omolu e do ofá de Oxossi não há um só genocídio perpetrado na face da terra. Nunca houve qualquer guerra religiosa em que se massacraram centenas de milhares de seres humanos em nome da fé nos encantados e orixás. A insígnia de nossos deuses nunca foi a mortalha de homens comuns - nós apenas batemos tambor e dançamos, não morremos ou matamos pela nossa fé.

Eu conheci e (me) reconheci (no) meu deus enquanto ele dançava, no corpo de uma yaô, ao ritmo do vento que balançava as folhas sagradas do mariô, amansando o chão de terra batida à virada do rum. Meu general, com a majestade dos seus passos, fazia farfalhar a copa dendezeiro com a destreza de sua adaga africana. O alfanje de Ogum alumiou meu mundo.

Que cada um tenha o direito de encontrar o mistério do que lhe é pertencimento, em gentileza e gestos de silêncio, toques de tambor e cantos de celebração da vida. 

Olorum Modupé, Nzambi-ampungu!

Luiz Antonio Simas, Ifábiyi.

19 de jul. de 2010

Resenha minha para o "Ideias & Livros", do Jornal do Brasil

Mariana Ianelli lança o livro de poemas 'Treva alvorada'

Filipe Couto*, Jornal do Brasil


RIO DE JANEIRO - “Vazio de quanto amávamos,/ mais vasto é o céu. Povoações/ surgem do vácuo./ Habito alguma?”. Com estes versos de Carlos Drummond de Andrade, Mariana Ianelli abre o seu Treva alvorada. Feliz referência que dá ao leitor atento uma das chaves necessárias para adentrar o universo – filosófico e lírico – dessa que é uma das mais belas vozes da poesia contemporânea.

Para aproveitar plenamente a leitura dos textos de Mariana, não basta conhecer os referentes míticos (explícitos e implícitos) que permeiam os 45 poemas do seu livro. Não basta, também, deter-se nas metáforas, tão sutis quanto impactantes, que surgem naturalmente no seu texto. É preciso perceber o cuidado com que ela tece cada verso, cuidando discretamente da cadência rítmica, mesmo adotando o verso livre. É preciso perceber o aproveitamento dos elementos mais prosaicos, que criam uma ponte entre o concreto e o inefável. É preciso, sobretudo, perceber que a poesia de Mariana Ianelli nasce do conflito, do contraste.

É no tal vácuo, anunciado por Drummond na epígrafe do livro, que se encontra a motivação lírica da autora (“Deixa-me te ouvir/ No pulso do silêncio/ E que eu não perca/ Em desavença/ O indício do teu passo”). É no desejo de refletir sobre o espaço entre o ser e o não-mais-ser que nasce a sua poesia. Uma poesia que, curiosamente, observa de perto a morte para, finalmente, encontrar a vida.

É por isso que, ao lermos cada página da coletânea Treva alvorada, vivenciamos o paradoxo de tudo e nada saber: a irresistível vontade de buscar as entrelinhas, de buscar um sentido, um norte que, verdadeiramente, não há (“Eu, a quem faltava uma seta/ E sobravam direções”). Nesse processo de “escavação do ar”, estruturalmente reforçado por uma sintaxe fragmentada, realiza-se a fusão entre a perenidade e perecimento, o que possibilita múltiplas leituras e expande as possibilidades simbólicas da produção, incentivando releituras (“Procura as mãos/ Que te cavaram para fora,/ Inaugurando o teu passado,/ Imiscuindo-te entre a fome e o frio”).

Só quando chegamos à última das nove sequências (ou “povoações”) que compõem o livro, entendemos que o percurso produzido pelo eu-lírico não é linear, mas cíclico. Não se parte de um início para se chegar a um fim. Não se propõe uma reflexão que solucione as indagações filosóficas sugeridas ao longo de toda a obra. Pelo contrário, parece haver uma negação do aprendizado recolhido, o que incita o leitor a voltar à primeira página e repetir o caminho em busca de detalhes (“Como se de novo pairasse/ No mundo/ A solidão do primeiro homem”). É a morte que traz a vida; é a vida que traz a morte. Curiosa construção que revela, ainda mais, a capacidade da autora de sondar o íntimo do ser humano.

Isso é particularmente interessante porque a poesia contemporânea realmente carece de um teor mais humanístico. Preocupada em ser diferente, em escrever o que ainda não havia sido escrito, ela questionou a si mesma, abraçou conteúdos críticos e sociais, experimentou novas linguagens e, pelo que se vê, deixou de lado temas clássicos, fundamentais para que o homem entenda a si mesmo e, a partir disso, ao mundo que o cerca. O amor e a morte, Eros e Tânatos, tornaram-se referentes secundários, elementos adjuntos de uma poética distante de seus princípios básicos.

Treva alvorada faz parte de um conjunto de livros que, publicados por diferentes autores nos últimos anos, tentam resgatar, de forma consciente ou inconsciente, esses fundamentos líricos. Num mundo cada vez mais acelerado, maquínico e mercadológico, Mariana Ianelli nos oferece a contramão, a “Absurda leveza que te faz afundar/ e não é a morte”, para que nos tornemos todos “Náufragos do tempo” (versos do poema que dá título à coletânea). É a reflexão que ela quer e que seu livro nos exige.


* Professor de literatura brasileira e portuguesa. Autor de Breves cantares de nós dois.

11 de jun. de 2010

Gota d'água, de Chico Buarque e Paulo Pontes

Inspirada em Medeia, de Eurípedes, trata-se de um dos grandes momentos de Chico Buarque e Paulo Pontes. Nesta cena, Bibi Ferreira dá voz à Joana, a protagonista, mulher abandonada por Jasão que, tal como na peça original, casa-se com Alma, filha do rico Creonte.


JOANA
Tudo está na natureza
encadeado e em movimento –
cuspe, veneno, tristeza,
carne, moinho, lamento,
ódio, dor, cebola, coentro,
gordura, sangue, frieza,
isso tudo está no centro
de uma mesma e estranha mesa.

Misture cada elemento –
uma pitada de dor,
uma colher de fermento,
uma gota de terror.
O suco dos sentimentos,
raiva, medo ou desamor,
produz novos condimentos,
lágrima, pus e suor.

Mas, inverta o segmento,
intensifique a mistura,
temperódio, lagrimento,
sangalho com tristezura,
carnento, venemoinho,
remexa tudo por dentro,
passe tudo no moinho,
moa a carne, sangre o coentro,
chore e envenene a gordura:

Você terá um unguento,
uma baba, grossa e escura,
essência do meu tormento
e molho de uma fritura
de paladar violento
que, engolindo, a criatura
repara no meu sofrimento
co’a morte, lenta e segura.

JOANA
(Vestindo os filhos)
Eles pensam que a maré vai mas nunca volta
Até agora eles estavam comandando
o meu destino e eu fui, fui, fui recuando,
recolhendo fúrias. Hoje eu sou onda solta
e tão forte quanto eles me imaginam fraca.
Quando eles virem invertida a correnteza,
quero saber se eles resistem à surpresa,
quero ver como que eles reagem à ressaca.

(Tempo)

Meus filhos, vocês vão lá na solenidade,
digam à moça que a mamãe está contente
tanto assim que lhe preparou este presente
pra que ela prove, como prova de amizade.
Beijem seu pai, lhe desejem felicidade
co’a moça e voltem correndo, que eu e vocês
também vamos comemorar, sós, só nós três,
vamos mastigar um naco de eternidade.

BUARQUE, Chico e PONTES, Paulo. Gota D’Água. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira Ed., 1982, p.161.

7 de mar. de 2010

Inania Verba**

E ela chegou no seu vestido demasiadamente preto. Foi dela a nobreza de um primeiro gesto. Tocando meu braço, perguntou-me como andava a vida.

E eu queria saber dizer. Eu poderia, na verdade. Mas é que o mundo gira muito mais rápido agora, entende? E o que eu falo nesse agora, já não é mais o que eu falaria há um minuto. As estações não se sucedem; dentro da gente, elas se imbricam. Existe tanto a ser dito. Eu não gostaria de, simplesmente... Entende? Não é tão fácil assim amassar e amansar tudo isso num só peito sem sangrar, sem gritar, sem fugir. E eu não queria nem gritar, nem fugir. O mal que é bem, e não se sabe. Não é fácil, entende? E se a palavra mal cuidada escapa, e se o vento fecha olhos e ouvidos, e se ele leva tudo pra outra ponta da margem do sentido? É muito perigoso pensar em dizer. É preciso silêncio. Eu preciso de silêncio pra pensar, pra dizer. Mas, com você, há crianças e velhos rabugentos discutindo em cada canto da minha criação e, quem sabe... Entende? É como olhar a árvore (reta, força, cor e céu) e pensar na raiz: o real está além do que se vê. Eu precisava me perder pra não te perder, e nos perdia.

- Bem, bem... E a sua?
(por Filipe Couto)
*postado originalmente em www.asoutraspalavras.blogspot.com no dia 15 de dezembro de 2009.
*"Inania verba", em latim, significa "palavras inúteis" e é título, também, de um famoso poema do mestre Olavo Bilac.

6 de mar. de 2010

Conselhos de Polonius a Laertes, seu filho

Em Hamlet, de William Shakespeare (1564 - 1616):

"Ainda aqui, Laertes? Para bordo! O vento se acha a tergo de tua vela; já te reclamam. Vai com a minha bênção, e grava na memória estes preceitos:

Não dês língua aos teus próprios pensamentos, nem corpo aos que não forem convenientes.

Sê lhano (*simpático), mas evita abastardares-te (*corromper-se).

O amigo comprovado, prende-o firme no coração com vínculos de ferro, mas a mão não calejes com saudares a todo instante amigos novos.

Foge de entrar em briga; mas, brigando, acaso, faze o competidor temer-te sempre.

A todos, teu ouvido; a voz, a poucos; ouve opiniões, mas forma juízo próprio.

Conforme a bolsa, assim tenhas a roupa: sem fantasia; rica, mas discreta, que o traje às vezes o homem denuncia.

Não emprestes nem peças emprestado; que emprestar é perder dinheiro e amigo, e o oposto embota o fio à economia.

Mas, sobretudo, sê a ti próprio fiel; segue-se disso, como o dia à noite, que a ninguém poderás jamais ser falso."

31 de dez. de 2009

Conto de Ano Novo

Tinha mais nos olhos que no verbo aquela menina. E ainda não sabia se o real e o ideal eram paralelos ou contíguos. Nem sabia o que era con-tí-guo.

Mas imaginava. Imaginava tudo.

Imaginava, por exemplo, que era possível voar, se quisesse bem forte. E por isso apertava os olhos e ficava sem respirar por mais de um minuto – só desejando, desejando, desejando... Ficava tonta... Mas se achava mais próxima das nuvens que do chão.

Acreditava até que era possível controlar o tempo. E se orgulhava de ter mudado muitas histórias tristes, antes de elas se tornarem tristes. E se orgulhava de conseguir esquecer todas, para poder parecer surpresa quando elas acontecessem. Porque esse dom era seu segredo. Só seu.

Às vezes se cansava de amar tudo com tanta força. Tinha medo de pensar mal das pessoas e de desejar mal a elas. Não gostava do réveillon porque podia estar desatenta no exato instante da virada, e condenar um mundo todo.

Ficava encantada com Deus, aquele ser maravilhoso.
(por Filipe Couto)

19 de ago. de 2009

Festival Voz e Violão

Com muito orgulho, apresento Priscilla Frade defendendo, com valentia, a nossa música "Gaveta de Guardados" no Festival Voz e Violão:

12 de ago. de 2009

Flamengo

Uma pausa na gripe para dar espaço a dois tricolores:

1 - Há de chegar talvez o dia em que o Flamengo não precisará de jogadores, nem de técnico, nem de nada. Bastará a camisa, aberta no arco. E, diante do furor impotente do adversário, a camisa rubro-negra será uma bastilha inexpugnável.
Nelson Rodrigues

2 - Ser Flamengo (leia o texto em silêncio ou deixe-se acompanhar pela interpretação de Milton Gonçalves, que está no vídeo)

Ser Flamengo é ser humano e ser inteiro e forte na capacidade de querer. É ter certezas, vontade, garra e disposição. É paixão com alegria, alma com fome de gol e vontade com definição.

É ser forte como o que é rubro e negro como o que é total. Forte e total, crescer em luta, peleja, ânimo, e decisão.

Ser Flamengo é deixar a tristeza para depois da batalha e nela entrar por inteiro, alma de herói, cabeça de gênio militar e coração incendiado de guerreiro. É pronunciar com emoção as palavras flama, gana, garra, sou mais eu, ardor, vou, vida, sangue, seiva, agora, encarar, no peito, fé, vontade. Insolação.

Ser Flamengo é morder com vigor o pão da melhor paixão; é respirar fundo e não temer; é ter coração em compasso de multidão.

Ser Flamengo é ousar, é contrariar norma, é enfrentar todas as formas de poder com arte, criatividade e malemolência. É saber o momento da contramão, de pular o muro, de driblar o otário e de ser forte por ficar do lado do mais fraco. É poder tanto quanto querer. É querer tanto como saber; é enfrentar trovões ou hinos de amor com o olhar firme da convicção.

Ser Flamengo é enganar o guarda, é roubar o beijo. É bailar sempre para distrair o poder e dobrar a injustiça. É ir em frente onde os outros param, é derrubar barreiras onde os prudentes medram, é jamais se arrepender, exceto do que não faz. É comungar a humildade com o rei interno de cada um.

É crer, é ser, é vibrar. É vencer. É correr para; jamais correr de. É seiva, é salva; é vastidão. É frente, é franco, é forte, é furacão. É flor que quebra o muro, mão que faz o trabalho, povo que faz país.
Artur da Távola

14 de jan. de 2009

O mundo maquinal e a arte


Vivemos um momento tão complexo quanto delicado no desenvolvimento da nossa sociedade.

A lógica do mercado, a lógica da eficácia pela eficácia ajusta nossas vidas a modelos de agir, pensar e sentir que só denunciam a falência do modelo ocidental de civilização.

Acreditamos que é fundamental ter sucesso. E que sucesso é ter reconhecimento. E que reconhecimento é ter uma vida cada vez mais cheia – cheia de trabalho, cheia de obrigações, solicitações, papéis, computadores e decisões a executar; acreditamos que um homem bem-sucedido nunca pode ter tempo.

Acreditamos que muito da felicidade consiste em ter um bom emprego (e acreditamos que bom emprego é aquele que garante um bom dinheiro para pagar as contas em algum momento do fim do mês).

Acreditamos que segurança é mostrar serviço. E, por isso, temos que ser eficientes, rápidos, atentos e precisos; devemos estar sempre atualizados com as últimas novidades, com as últimas informações, com as últimas tecnologias, pois todo o nosso futuro, toda a nossa credibilidade pode depender disso. Há quem assine jornais e revistas, leia blogues especializados, ouça rádio, assista à televisão simplesmente para saber o que pensar sobre o mundo e sobre si mesmo. Mais ainda: há quem se algeme à grande mídia simplesmente para não enxergar o mundo de forma diferente da dos outros homens, por medo de ser excluído.

Que paradoxo: o homem ocidental sempre desejou ser livre, mas tem medo de romper com o sistema e, por isso, se fecha às possibilidades do mundo.

Acreditamos que são necessários corpos melhores e que corpos melhores não são necessariamente saudáveis, mas corpos mais bonitos e fortes. Queremos ser desejados, admirados, reverenciados como imagens sedutoras, como estátuas imortais de beleza. E para isso frequentamos academias em horários absurdos, fazemos dietas incompreensíveis, cobiçamos pessoas de quem jamais ouvimos um só pensamento autônomo e construtivo.

Parece que o homem, por não entender o que significa ser homem, deseja ser uma espécie de super-homem. Não o do Nietzsche ou o dos quadrinhos, mas aquele que se define por querer ser tudo ao mesmo tempo, sempre da forma mais eficiente possível. O espelho do homem não é mais outro homem e sim a máquina, símbolo de perfeição, eficiência e produtividade, símbolo que o homem sonhou e que o fez sonhar com uma realidade sem defeitos. Fazer poesia, desenhar, musicar, esculpir, dançar ou mesmo refletir soam como atividades improdutivas, coisa de fraco, bobo, louco ou desocupado.

O homem de hoje não se entrega à sua sensibilidade. Ou ainda, o homem de hoje é incapaz de reconhecer a grandeza de sua sensibilidade, das suas emoções: falta tempo pra isso. Ele busca a felicidade, mas não sabe onde encontrá-la, porque ele nunca pensou por si próprio; ele sonha com um grande amor, mas não tem idéia de como vivê-lo, porque sequer se conhece, porque aplica às emoções a lógica do mercado. Quantas e quantas pessoas estão por aí hoje "se curtindo", sem nenhuma pretensão de crescer com esse tipo de relacionamento? Quantas e quantas pessoas se metem em namoros e casamentos porque seus pares são "legais"?

Mas chega um momento
em que (sem heroísmos ou egoísmos)
é preciso inventar um pequeno barco no ar

(ou um outro sonho qualquer
que nos arranque o chão dos pés).

Chega um momento
em que não se pode aguardar o vento,
em que temos que nos arremessar ao mar.

Porque é urgente salvar o amor.

Chega um momento em que é urgente amar.

Por isso, é tão importante valorizar o artista.

Eles sim merecem ser admirados e reverenciados. E merecem ser admirados e reverenciados porque transgridem os limites dessa realidade maquinal. Dedicam-se a produzir trabalhos que não vão torná-los mais ricos ou mais fortes, mas que vão lembrar a todos nós que ainda “somos carne, osso, alma e sentimento, tudo isso ao mesmo tempo”. Trabalhos que falam sobre sonhos, fantasias, medos, paixões e covardias e que, por isso, vão lembrar a todos nós que o ser humano precisa sim ter imperfeições, porque só sabemos o que é a felicidade porque existe a tristeza; só sabemos o que é a beleza, porque existe a feiúra; porque sabemos que toda ousadia precisa conviver de perto com o pudor. Trabalhos que vão nos lembrar que, às vezes, é preciso “levar a vida mais devagar, pra não faltar amor”.

O ser humano precisa urgentemente da arte. Precisa porque a arte faz pensar. Ouvir uma boa música, ler um bom livro, apreciar uma tela não são perda de tempo. Pelo contrário, são atividades que certamente vão desenvolver nosso potencial reflexivo, crítico e criativo e que, por isso, vão permitir uma melhor absorção dessa avalanche de informações, símbolos e imagens a que estamos submetidos todos os dias.

O ser humano precisa da arte porque nesse mundo tão individualista é bom sabermos que não estamos sozinhos nas nossas angústias e nas nossas alegrias; que um outro ser humano de outra realidade histórica é capaz de sentir exatamente o que nós estamos sentindo; porque, afinal de contas, a arte tem essa incrível capacidade de nos entender e de nos descobrir. Sem fazer muitas perguntas.

(por Filipe C.)
Os vídeos a seguir complementam essa reflexão e a expandem. Assistam a eles!