4 de jan. de 2011

Felicidade, voz e cultura

Uma das reflexões filosóficas mais antigas e mais importantes da civilização ocidental é a que pondera sobre qual seria a melhor forma de viver.

Já em A República, Platão explicava que, ao ser inquirido por um interlocutor sobre essa questão, Sócrates dizia ser impossível a ele determinar um conjunto de ações que conduzissem um outro homem a um estado de felicidade. O filósofo só concebia positividade na vida, se ela fosse livremente determinada pelo próprio indivíduo, e não por outro. Isso não significa, entretanto, que seja a liberdade a chave para a felicidade, pois se só tivéssemos como opção sermos livres, estaríamos contradizendo a premissa inicial. Não é, portanto, a liberdade em si a razão da felicidade, mas a livre determinação da vida.

Diante de uma instância coercitiva - seja "positiva", seja "negativa" - o homem não é pleno de si mesmo. Não é feliz, por esse raciocínio, o faminto que pensa em roubar um pão, mas não o faz, antes por temer ser flagrado que por acreditar que assim a vida em comunidade será melhor para ele e para todos.


Desenvolvendo esse tópico em seu célebre Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, Jean-Jaques Rousseau imprime novas tintas à discussão e tece uma das mais seguras reflexões sobre a origem do desconforto humano consigo mesmo. Explica o mestre que, dentre todos os seres vivos, o homem é o único que não se satisfaz com sua própria natureza.

"Não vejo em todo animal senão uma máquina engenhosa, à qual a natureza deu sentidos para prover-se ela mesma, e para se preservar, até certo ponto, de tudo o que tende a destruí-la ou perturbá-la. Percebo precisamente as mesmas coisas na máquina humana, com a diferença de que só a natureza faz tudo nas operações do animal, ao passo que o homem concorre para as suas na qualidade de agente livre. Um escolhe ou rejeita por instinto, o outro por um ato de liberdade, o que faz com que o animal não possa afastar-se da regra que lhe é prescrita, mesmo quando lhe fosse vantajoso fazê-lo, e que o homem dela se afaste freqüentemente em seu prejuízo. É assim que um pombo morre de fome perto de uma vasilha cheia das melhores carnes, e um gato sobre uma porção de frutas ou de grãos, embora ambos pudessem nutrir-se com os alimentos que desdenham, se procurassem experimentá-lo; é assim que os homens dissolutos se entregam a excessos que lhes ocasionam a febre e a morte, porque o espírito deprava os sentidos, e a vontade fala ainda quando a natureza se cala."

Com o objetivo de sustentar indutivamente seu raciocínio, Rousseau cita o pombo e o gato - como metonímias de todos os animais - para esclarecer que, em toda a natureza, o instinto basta para que o vivente fique em paz consigo mesmo. Um gato jamais precisará de outra faculdade, a não ser aquelas que instintivamente já possui, para exercer plenamente a sua vida felina. Mais: um gato não busca nada além daquilo que já está presente em sua própria natureza para viver, para se relacionar com o mundo.

O homem, de outra forma, embora também seja dotado de instintos humanos, transcende-os para satisfazer as suas necessidades existenciais. É o “ato de liberdade”, citado pelo filósofo, que faz um homem, muitas vezes, rejeitar algo que, por natureza, ser-lhe-ia útil e, outras vezes, desejar algo que nada lhe acrescentaria na prática.

"Todo animal tem idéias, pois tem sentidos; combina mesmo as idéias até certo ponto: e, sob esse aspecto, o homem só difere do animal do mais ao menos; alguns filósofos chegaram a avançar que há mais diferença entre um homem e outro do que entre um homem e um animal. Não é, pois, tanto o entendimento que estabelece entre os animais a distinção específica do homem como sua qualidade de agente livre. A natureza manda em todo animal, e a besta obedece. O homem experimenta a mesma impressão, mas se reconhece livre de aquiescer ou de resistir; e é sobretudo na consciência dessa liberdade que se mostra a espiritualidade de sua alma; porque a física explica de certa maneira o mecanismo dos sentidos e a formação das idéias; mas, no poder de querer, ou melhor, de escolher, e no sentimento desse poder, só se encontram atos puramente espirituais, dos quais nada se pode explicar pelas leis da mecânica."

Clara razão para esse comportamento - exclusivamente humano, segundo Rousseau - seria o evento histórico da comunicação, a partir da vida em comunidade. Isso teria incutido em nossos espíritos a ideia de perfectabilidade, de necessário aperfeiçoamento, o que, paradoxalmente, teria originado determinados vícios morais, como a inveja e a vaidade, característicos da vida em sociedade.

"Adquire-se o hábito de se reunir diante das cabanas ou em torno de uma grande árvore: o canto e a dança, verdadeiros filhos do amor e da ociosidade, tornam-se divertimento, ou antes, ocupação dos homens e das mulheres ociosos e agrupados. Cada um começa a olhar os outros e a querer ser olhado por sua vez, e a estima pública tem um preço. Aquele que canta ou dança melhor, o mais belo, o mais forte, o mais destro ou o mais eloqüente, torna-se o mais considerado. E foi esse o primeiro passo para a desigualdade e para o vício, ao mesmo tempo: dessas primeiras preferências nasceram, de um lado, a vaidade e o desprezo e, de outro, a vergonha e a inveja; e a fermentação causada por esses novos fermentos produziu, enfim, compostos funestos à felicidade e à inocência."

O homem, portanto, ao trocar experiências com outros homens, desperta o que há de melhor e o que há de pior em sua própria essência. Diante disso, como seria viável uma vida em comunidade que pudesse nos levar a ser, simultaneamente, produtivos, seguros e felizes?

Se é verdade que a livre determinação da vida é elemento desejável no perfil de um homem ideal, também é verdade que a vida em comunidade permitiu que houvesse trocas de conhecimento e de experiências, a fim de que determinados erros cometidos por uma geração não precisem ser repetidos pela próxima, a fim de que determinados acertos possam ser perpetuados.

Embora haja visíveis exceções, é possível reconhecermos alguns traços psicológicos e comportamentais que são passados - ora de forma mais enfática, ora de forma mais tênue - de geração a geração, como forma de garantir uma vida harmônica. Esses traços, que podemos chamar de ética ou de moral, compõem a tradição de uma determinada comunidade. São suas raízes, suas referências, seu jeito de ser, que pode ser ponderado, mas jamais esquecido. O conhecimento da própria história torna-se algo fundamental para uma vida feliz, seja para negar certos valores, seja para confirmá-los.

O que se vê, no entanto, nos dias de hoje, é o desejo compulsivo pelo consumo de fórmulas de felicidade. Livros de auto-ajuda oferecem, em lições condensadas, as receitas para o sucesso profissional ou para a realização amorosa; as tevês anunciam produtos que garantem a satisfação pessoal e exibem corpos que devem ser copiados, para que sejam cobiçados; a indústria farmacêutica vende, como nunca, remédios contra a depressão e a ansiedade: lembremos que o Rivotril é o segundo medicamento mais consumido no país.


Millôr Fernandes, num de seus famosos aforismos, diz: "Parece mesmo que a maior aspiração do povo é a liberdade de se deixar mandar". De fato, o filme A vida de Brian, do grupo inglês Monty Python, traz um exemplo claro disso. Brian é confundido com o messias e intimado pela multidão de fiéis a ensinar-lhes a "verdade". Ele diz, então, ao povo: “Vocês precisam pensar por si mesmos. Vocês são todos indivíduos!”, ao que a multidão responde em coro: “Sim, somos todos indivíduos”. Em seguida, Brian insiste “Vocês são todos diferentes!” e, mais uma vez, em coro, a multidão replica: “Sim, somos todos diferentes!”. Veja a cena do "Paradoxo de Brian", em inglês:


Diz-nos Sérgio Buarque de Hollanda, em seu aclamado Raízes do Brasil, que, muitas vezes, sentimo-nos “desterrados em nossa própria terra”. Talvez por imposição das influências coloniais, nosso percurso histórico, segundo o ensaísta, evidenciaria a falta de elementos que nos identificassem, nos aclarassem, nos definissem frente a nós mesmos como membros de uma mesma comunidade. Manuel Bandeira, numa crônica intitulada “Mário de Andrade”, dá a exata medida desse complexo processo:

"Negras e cidades no Brasil são temas exóticos. Mesmo nos brasileiros. Uma coisa cacête nas nossas tentativas de assuntos nacionais é que os tratamos como se fôssemos estrangeiros: não são exóticos para nós e nós os exotizamos. Falamos de certas coisas brasileiras como se as estivéssemos vendo pela primeira vez, de sorte que, em vez de exprimirmos o que há nelas de mais profundo, isto é, de mais cotidiano, ficamos nas exterioridades puramente sensuais."

Em outra crônica, “Poesia do Sertão”, Bandeira cita o mesmo problema, criticando a produção literária nacional, que tentava aproveitar o folclore:

"A qualidade mais preciosa da arte popular é a ingenuidade e no entanto tôda essa nossa poesia de inspiração nacional carece de ingenuidade"

A falta de ingenuidade decorreria da falta de ligação, de identidade, entre o autor e a realidade liricizada. Sintoma de desenraizamento. Falando do poeta do sertão, Catulo da Paixão Cearense, diz-nos Bandeira:

"Catulo da Paixão Cearense? É sem dúvida um poetão, (...). Mas é tão da cidade quanto nós outros. Não se confunde com o sertão.É um sertão de saudade o seu. Um sertão muito saído de vocábulos regionais."

E demonstrando a dificuldade de aceitação desse seu pensamento, o poeta, na mesma crônica, cita o caso de Ascenso Ferreira:

"Uma meia dúzia dos seus poemas tinham (sic) bem aquêle sabor da obra de arte em que o autor se confunde com o assunto.(...) Fiz o possível para inspirar ao autor de Catimbó (Ascenso Ferreira) o gôsto de ser o poeta de Palmares. (...) Mas logo da primeira vez (que quis apresentá-lo assim) o autor do Catimbó me chamou de parte e me fêz sentir que eu estava fazendo com ele uma pilhéria de mau gôsto. Ascenso fazia questão fechada de ser um poeta culto"

Essa "questão de ser culto" parece ser na opinião de Bandeira o grande entrave à nossa necessidade de autodescoberta. No Prefácio às Cartas de Mário de Andrade a Manuel Bandeira, ele no diz:

"Sempre fui partidário do abrasileiramento do nosso português literário, de sorte que aceitava em princípio a iniciativa de Mário. Mas discordava dêle profundamente na sua sistematização, que me parecia indiscretamente pessoal, resultando numa construção cerebrina, que não era a língua de ninguém. Eu não podia compreender como alguém, cujo principal fito era ´funcionar socialmente dentro de uma nacionalidade´ se deixava levar, por espírito de sistema, a escrever uma língua artificialíssima (...)"

Também Alfredo Bosi tangencia esse tópico na importante palestra Cultura como Tradição. Citando ensinamentos apreendidos com o professor Oswaldo Elias Xidieh, diz-nos o ensaísta que a cultura popular deve estar com o povo. Quanto menor a influência do Estado no folclore, maior será a presença das legítimas tradições. Eis o drama para Bandeira: nossos eruditos tentam se apropriar do que é mais externo da cultura popular, não do que é interno. Buscamos o sensual, e não o íntimo. Seja no retrato, seja no tema, seja na linguagem, não nos identificamos plenamente com a brasilidade que se pretende expor. É como se fôssemos intelectualizar o que não pode, nem deve ser intelectualizado.

Diante, pois, do momento pós-moderno, alienante e alienado, individualista e narcisista, o topos acima descrito ganha extrema relevância. O homem vem deixando, gradualmente, de ser a fonte individual do sentido ou da ação diante do mundo. De fato, a evolução do capitalismo demonstra que a experiência humana é antes garantia de caos que de equilíbrio ou garantia de sentido. A base empírica do conceito positivista de conhecimento, isto é, a confiança na observação e na experimentação, típica do século XIX, vem sendo cada vez mais questionada.

Um exemplo claro disso, ainda segundo o professor Alfredo Bosi, é que hoje o indivíduo projeta a quantidade/ qualidade de cultura de uma pessoa na quantidade/ qualidade de livros, por exemplo, que ela possui, nos simulacros desse saber. O indivíduo parece não se importar muito com a reflexão que se faz sobre a leitura deles.



Se a tendência da sociedade contemporânea é o agora, é a lógica do consumo, é a valorização do simulacro, em vez da experiência concreta, é a decadência dos grandes ideais, dos grandes valores e das instituições, é a criação indivíduos sem história, programados e solitários, então o problema do desenraizamento fica potencializado.

O quadro que se expõe à análise não é dos mais simples: à necessidade de comunicação, de conhecimento da própria terra, de sua própria humanidade contrapõe-se a deterioração do valor das trocas de experiência, em virtude do mundo caótico em que se vive.

Nas considerações sobre a obra de Nicolai Leskov, Walter Benjamin aponta que esse processo de deterioração do conhecimento coletivo, referido anteriormente, é uma das marcas da sociedade formada após as guerras mundiais do século XX. Com elas, tornou-se manifesto um processo que continua até hoje. No final da guerra, observou-se que os combatentes voltavam mudos do campo de batalha não mais ricos, e sim mais pobres em experiência comunicável. E o que se difundiu dez anos depois, na enxurrada de livros sobre a guerra, nada tinha em comum com uma experiência transmitida de boca em boca.



Parece claro, portanto, que uma forma eficiente de combater o estado de anomia, de desenraizamento, de mudez do ser humano, é recuperar-lhe voz e ouvidos, trazendo-o de volta à sua legítima tradição oral. Saber ler, ouvir e ver seus pares é, sobretudo, refletir sobre si mesmo. Um ato menos de altruísmo que de autoconhecimento.

E esse trabalho será tão mais fértil, quanto mais cedo iniciado.