20 de nov. de 2010

Quilombos às avessas

Se me permitem o clichê, é preciso mais que o tempo para apagar as manchas que séculos e séculos de escravidão deixaram na nossa gente. O preconceito determinista e o pensamento nobiliárquico/aristocrático ainda têm pesada voz em muitos círculos, abastados ou não, da nossa sociedade.

O resultado disso é que permanece, nos nossos dias, um processo medonho de "embranquecimento" da nossa gente; um preconceito que não só incita, por exemplo, a ridicularização das manifestações musicais e religiosas do povo negro e ameríndio, mas também, quando muito, a absorção superficial da sua influência na nossa cultura. Explico.

O Brasil, para muitas pessoas, não é uma nação, uma raiz; é apenas uma circunstância, um triste acaso do destino. Tudo aqui lhes é exótico. Muitos há que "toleram" o samba e o candomblé, para citar casos comuns, mas se posicionam diante dessas manifestações como turistas que se veem num safári. Vão a uma noite de samba no Salgueiro ou a um terreiro e acham que merecem uma medalha de bravura por isso. São capazes de "achar lindo o toque daquele tambor e aquelas moças todas dançando", mas se colocam numa posição de distanciamento e superioridade, típica de quem detém exclusivamente o saber formal das músicas eruditas de Mozart, das epopeias de Homero, das pinturas de Caravaggio e "curte o som das melhores casas noturnas de Ibiza". São os desterrados em sua própria terra; são os que sonham morar em Paris ou Miami; são os que criam núcleos de resistência em condomínios e shoppings, numa espécie de quilombo às avessas. Estão neste país permanentemente de férias, esperando uma europeização que, para eles, tem que vir, e há de vir.

Quero deixar claro que este texto não busca fazer uma simplista apologia da cultura popular, em detrimento da erudita (ou, em outra visão, da verdadeira cultura nacional, em detrimento de estrangeira). Este texto busca demonstrar que não se pode encarar uma como oficial, outra como marginal; uma como desejável, outra como tolerável (quando muito). É no Brasil preto, índio, branco e imigrante que vivemos e, por isso, não adianta consumirmos apenas o que vem de fora para nos esclarecermos diante de nós mesmos. É preciso conhecer e respeitar esse Brasil de verdade para encontrarmos paz.

Certo é, meus caros, que gostos variam e que afinidades se criam, e por conta disso é perfeitamente possível gostar mais de uma fuga de Bach que de um choro de Pixinguinha, ou mais de uma canção dos Beatles que de um samba de Candeia. O que não se pode é desprezar legítimas manifestações culturais ou pensar que elas devem se circunscrever a determinados grupos.


Vejo com temor algumas pessoas ainda proclamando que não existe preconceito no Brasil, e outras acreditando nisso. Pior: pessoas achando ridículo existir um dia da consciência negra, sob a alegação de que isso sim é que cria o preconceito. Pois bem, numa rápida busca no Twitter pelo termo "Umbanda", encontrei ataques e deboches inúmeros. Encontrei também, por exemplo, o seguinte: "ah não, ah não, ah não, o 'fulano' é da Umbanda... =/ Nada contra, mas é que eu amo ele, quero o bem dele...". Esse "nada contra" do texto dela é perigosíssimo, porque, na verdade, o que se está dizendo é "tolero crenças diferentes das minhas, desde que eu e aqueles com quem me importo não tenhamos que nos relacionar diretamente com elas". Essa pessoa talvez não saiba que é preconceituosa. Mas é. Muito. Extrapolando o exemplo: são pessoas assim que acham normalíssimo e democrático construir muros para isolar as favelas (não pagam iptu mesmo) e cobrar fortunas para entrar em estádios de futebol (ora, não tem lugar pra todo mundo). São pessoas assim que, em breve, vão lutar para que o carnaval do Rio de Janeiro seja feito com abadás (ninguém quer ficar no calor, longe do bloco, né?). Sobre esse tema, sugiro excelente texto de Luiz Antonio Simas: A síndrome de Neuendorf e a direita raivosa.

Tive a sorte de ser criado para entender que as palavras de um preto-velho eram tão importantes quanto as de um professor em sala de aula. E foi um desses guias que uma vez me ensinou que há beleza nas coisas simples, que há beleza até na tristeza, mas não há nenhuma na raiva, no ódio; me ensinou que caráter não se mede em livros, mas que eles também são importantes para nos ajudar a pensar o mundo, as pessoas e, com isso, buscar uma vida mais leve; me ensinou curimbas que marejaram meus olhos, como Dante e Beatrice um dia também o fizeram; me ensinou que nem sempre pedra é pedra e que mesmo a miudinha pode ser imensa. Sabedoria imensa.

De minha parte, portanto, cabe sempre lutar para que as minhas raízes sejam preservadas, difundidas e respeitadas. Tenho, no coração, meu pai Oxóssi de mãos dadas com Fernando Pessoa e garanto: desse conluio só consegui extrair coisas boas. Meu coração é também preto, como em verdade é o de todo brasileiro. Como me disse uma vez mestre Simas: "somos homens de bem, e não temos vergonha do nosso povo".

Neste dia de Zumbi, convite à reflexão, termino este arrazoado com as sábias palavras do grande Solano Trindade, poeta negro, poeta do povo brasileiro, dos grandes da nossa raça: "Quem me ouvir, ouça!"

Apesar de tudo que tenho ouvido e lido sobre poesia, resultado das teses e debates nos congressos de poetas e críticos - não me sinto disposto a mudar de linha, de sair do caminho popular de minha poética.

Sem querer discutir o valor dos herméticos “concretistas”, “neo-concretistas”, “dadaístas”, etc (eruditos donos da cultura ocidental), prefiro levar ao meu povo uma mensagem, em linguagem simples, em vez de uma mensagem cifrada para um grupo de intelectuais.

Tenho pelos homens de cultura uma grande simpatia, sejam modernos ou acadêmicos; tenho aprendido muito com todos eles, através dos seus livros e das suas conversas, porém, a minha poesia continuará com o estilo do nosso populário, buscando no negro o ritmo, no povo em geral, as reivindicações sociais e políticas, e nas mulheres, em particular o Amor.

Agradam-me profundamente os títulos de “poeta negro”, “poeta do povo”, “poeta popular”, às vezes ditos de modo depreciativo - mas que me dão uma consciência exata do meu papel de poeta na defesa das tradições culturais do meu povo, na luta por um mundo melhor. Unir o Universal ao Regional, num poema participante ou amoroso, num verso de protesto ou ternura - mas em palavras bem compreensíveis.

Quem me ouvir, ouça.
Eu canto aos Palmares
sem inveja de Virgílio, de Homero e de Camões
porque o meu canto é o grito de uma raça
em plena luta pela liberdade!

(Solano Trindade. São Paulo, julho de 1961)


13 de out. de 2010

Interlúdio

Nos próximos dias, não devo conseguir escrever nada por aqui. Nesse breve interlúdio, deixo, traduzido em vídeo, o poema "Dance, monkeys, dance!", do americano Ernest Cline

Em tempos de intolerância religiosa, política e social, vale muito pensar uns bons minutos nele. 

Abraços!

11 de set. de 2010

A luta pela tolerância religiosa





Senhores Deputados,

Foi com profunda preocupação que recebi a notícia de que  o Deputado e pastor evangélico Edson Albertassi, membro dessa casa, apresentou um projeto com o objetivo de anular a lei que declara a Umbanda e o Candomblé bens imateriais do Estado do Rio de Janeiro. O mesmo parlamentar tem, sistematicamente, apresentado projetos de lei que atacam frontalmente as crenças afro-brasileiras e ameríndias em nome do que ele mesmo chama de conduta cristã.

Em um contexto em que demonstrações de intolerância religiosa se tornam cada vez mais costumeiras, a proposta do cruzado-legislador com sede de guerra santa se configura como ameaça aos princípios da tolerância e do respeito às diferenças, elementos básicos para o convívio fraterno da comunidade.

Certa feita escrevi um texto sobre a religiosidade brasileira e a relação de nosso povo com as divindades. Cito alguns trechos, nesse momento em que nossos ritos sofrem toda sorte de ataques, do que então expressei:

"Somos, os brasileiros,  filhos do mais improvável dos casamentos, entre o meu compadre Exu e a Senhora Aparecida - a prova maior de que o amor funciona. E Tupã, que se vestiu com o cocar mais bonito para a ocasião, celebrou a cerimônia entre a cachaça e a água benta.

Uma das nossas mãos está calejada pelo contato com a corda santa do Círio de Nazaré - a outra tem os calos gerados pelo couro do atabaque que evoca as entidades. As mãos do Brasil e do seu povo.

Nossos ancestrais passeiam pela vastidão da praia sagrada dos índios de Morená, retornam à Aruanda nas noites de lua cheia, silenciam no Orum misterioso das almas e florescem encantados nas folhas da Jurema.

Os guerreiros de nossas tropas trazem a bandeira do Humaitá, o escudo de Ogum e o estandarte da pomba branca do Divino Espírito Santo - a mesma pomba que pousou na ponta do opaxorô de Obatalá. São essas as nossas divisas de guerra e paz; exércitos do Brasil."

Escrevi isso porque, senhores deputados, nasci e cresci dentro de um terreiro de macumba. Falo dessa procedência com orgulho tremendo. Minha avó era mãe de santo na Baixada Fluminense do Rio de Janeiro, versada nos segredos da jurema e da encantaria. Fui, por isso mesmo, batizado nos conformes da curimba - protegido pelo caboclo Pery e pelo Exu Tranca Rua das Almas e oferecido aos cuidados da lua velha, num terreiro grande de Nova Iguaçu.

Tive uma infância alumiada pelo rufar dos tambores brasileiros e pelo alumbramento com os caboclos de pena e os marujos e boiadeiros da minha macaia querida. Quem viu, viu - e sabe do que eu falo.

Em um certo momento busquei as raízes mais profundas. Fui ao candomblé, me iniciei, recebi um cargo, cantei em iorubá e conheci a religiosidade afro-caribenha. Em meu peito, todavia, continuou batendo forte a virada dos caboclos do Brasil. De mim, que atravessei o mar só para ver a juremeira, isso ninguém tira !

Conversei com Seu Zé; recebi conselhos de Seu Tranca Ruas; vi a dança de guerra de Seu Tupinambá; fui seduzido pela beleza de Mariana e pela saudade de seu navio; temi a presença de Seu Caveira; cantei a delicadeza da pedrinha miudinha; respeitei o cachimbo velho de Pai Joaquim; me emocionei quando Cambinda estremeceu para segurar o touro bravo e amarrar o bicho no mourão do tempo.

É por isso, pelo meu encanto pela Mãe d´Água, pelo temor amoroso ao caboclo Japetequara - veterano bugre do Humaitá - pela reverência aos que correram gira pelo norte, que me emociono com os santos brasileiros, pretos e índios como nós - por amor ao Brasil ! Amor bonito e dedicado, feito o cocar de Sete Flechas e o diadema de Seu Sucuri no limiar das luas.

É por tudo isso ainda, senhores, que afirmo: Não queremos converter e não queremos ser convertidos. Queremos crer apenas que o Pai maior, em Sua sabedoria, revelou-se a cada povo trajando a roupa que lhe pareceu mais conveniente para que os homens o reconhecessem, feito Zambiapungo e Olorum nos infinitos e Tupã nas matas. 

Os deuses que vieram dos porões dos tumbeiros e das florestas do Brasil  amenizaram séculos de dor e sofrimento e forjaram a armadura da resistência e da dignidade de um povo. Os deuses do Brasil nos ensinaram a olhar a natureza com os contornos da poesia e a delicadeza dos ritos imemoriais. Essa é a tessitura nossa de olhar o mundo.

Divinizamos os homens e humanizamos os deuses para construir uma civilização amorosa nos confins do ocidente. Em nome do oxê de Xangô, do pilão de Oxaguiã, do xaxará de Omolu e do ofá de Oxossi não há um só genocídio perpetrado na face da terra. Nunca houve qualquer guerra religiosa em que se massacraram centenas de milhares de seres humanos em nome da fé nos encantados e orixás. A insígnia de nossos deuses nunca foi a mortalha de homens comuns - nós apenas batemos tambor e dançamos, não morremos ou matamos pela nossa fé.

Eu conheci e (me) reconheci (no) meu deus enquanto ele dançava, no corpo de uma yaô, ao ritmo do vento que balançava as folhas sagradas do mariô, amansando o chão de terra batida à virada do rum. Meu general, com a majestade dos seus passos, fazia farfalhar a copa dendezeiro com a destreza de sua adaga africana. O alfanje de Ogum alumiou meu mundo.

Que cada um tenha o direito de encontrar o mistério do que lhe é pertencimento, em gentileza e gestos de silêncio, toques de tambor e cantos de celebração da vida. 

Olorum Modupé, Nzambi-ampungu!

Luiz Antonio Simas, Ifábiyi.

19 de jul. de 2010

Resenha minha para o "Ideias & Livros", do Jornal do Brasil

Mariana Ianelli lança o livro de poemas 'Treva alvorada'

Filipe Couto*, Jornal do Brasil


RIO DE JANEIRO - “Vazio de quanto amávamos,/ mais vasto é o céu. Povoações/ surgem do vácuo./ Habito alguma?”. Com estes versos de Carlos Drummond de Andrade, Mariana Ianelli abre o seu Treva alvorada. Feliz referência que dá ao leitor atento uma das chaves necessárias para adentrar o universo – filosófico e lírico – dessa que é uma das mais belas vozes da poesia contemporânea.

Para aproveitar plenamente a leitura dos textos de Mariana, não basta conhecer os referentes míticos (explícitos e implícitos) que permeiam os 45 poemas do seu livro. Não basta, também, deter-se nas metáforas, tão sutis quanto impactantes, que surgem naturalmente no seu texto. É preciso perceber o cuidado com que ela tece cada verso, cuidando discretamente da cadência rítmica, mesmo adotando o verso livre. É preciso perceber o aproveitamento dos elementos mais prosaicos, que criam uma ponte entre o concreto e o inefável. É preciso, sobretudo, perceber que a poesia de Mariana Ianelli nasce do conflito, do contraste.

É no tal vácuo, anunciado por Drummond na epígrafe do livro, que se encontra a motivação lírica da autora (“Deixa-me te ouvir/ No pulso do silêncio/ E que eu não perca/ Em desavença/ O indício do teu passo”). É no desejo de refletir sobre o espaço entre o ser e o não-mais-ser que nasce a sua poesia. Uma poesia que, curiosamente, observa de perto a morte para, finalmente, encontrar a vida.

É por isso que, ao lermos cada página da coletânea Treva alvorada, vivenciamos o paradoxo de tudo e nada saber: a irresistível vontade de buscar as entrelinhas, de buscar um sentido, um norte que, verdadeiramente, não há (“Eu, a quem faltava uma seta/ E sobravam direções”). Nesse processo de “escavação do ar”, estruturalmente reforçado por uma sintaxe fragmentada, realiza-se a fusão entre a perenidade e perecimento, o que possibilita múltiplas leituras e expande as possibilidades simbólicas da produção, incentivando releituras (“Procura as mãos/ Que te cavaram para fora,/ Inaugurando o teu passado,/ Imiscuindo-te entre a fome e o frio”).

Só quando chegamos à última das nove sequências (ou “povoações”) que compõem o livro, entendemos que o percurso produzido pelo eu-lírico não é linear, mas cíclico. Não se parte de um início para se chegar a um fim. Não se propõe uma reflexão que solucione as indagações filosóficas sugeridas ao longo de toda a obra. Pelo contrário, parece haver uma negação do aprendizado recolhido, o que incita o leitor a voltar à primeira página e repetir o caminho em busca de detalhes (“Como se de novo pairasse/ No mundo/ A solidão do primeiro homem”). É a morte que traz a vida; é a vida que traz a morte. Curiosa construção que revela, ainda mais, a capacidade da autora de sondar o íntimo do ser humano.

Isso é particularmente interessante porque a poesia contemporânea realmente carece de um teor mais humanístico. Preocupada em ser diferente, em escrever o que ainda não havia sido escrito, ela questionou a si mesma, abraçou conteúdos críticos e sociais, experimentou novas linguagens e, pelo que se vê, deixou de lado temas clássicos, fundamentais para que o homem entenda a si mesmo e, a partir disso, ao mundo que o cerca. O amor e a morte, Eros e Tânatos, tornaram-se referentes secundários, elementos adjuntos de uma poética distante de seus princípios básicos.

Treva alvorada faz parte de um conjunto de livros que, publicados por diferentes autores nos últimos anos, tentam resgatar, de forma consciente ou inconsciente, esses fundamentos líricos. Num mundo cada vez mais acelerado, maquínico e mercadológico, Mariana Ianelli nos oferece a contramão, a “Absurda leveza que te faz afundar/ e não é a morte”, para que nos tornemos todos “Náufragos do tempo” (versos do poema que dá título à coletânea). É a reflexão que ela quer e que seu livro nos exige.


* Professor de literatura brasileira e portuguesa. Autor de Breves cantares de nós dois.

11 de jun. de 2010

Gota d'água, de Chico Buarque e Paulo Pontes

Inspirada em Medeia, de Eurípedes, trata-se de um dos grandes momentos de Chico Buarque e Paulo Pontes. Nesta cena, Bibi Ferreira dá voz à Joana, a protagonista, mulher abandonada por Jasão que, tal como na peça original, casa-se com Alma, filha do rico Creonte.


JOANA
Tudo está na natureza
encadeado e em movimento –
cuspe, veneno, tristeza,
carne, moinho, lamento,
ódio, dor, cebola, coentro,
gordura, sangue, frieza,
isso tudo está no centro
de uma mesma e estranha mesa.

Misture cada elemento –
uma pitada de dor,
uma colher de fermento,
uma gota de terror.
O suco dos sentimentos,
raiva, medo ou desamor,
produz novos condimentos,
lágrima, pus e suor.

Mas, inverta o segmento,
intensifique a mistura,
temperódio, lagrimento,
sangalho com tristezura,
carnento, venemoinho,
remexa tudo por dentro,
passe tudo no moinho,
moa a carne, sangre o coentro,
chore e envenene a gordura:

Você terá um unguento,
uma baba, grossa e escura,
essência do meu tormento
e molho de uma fritura
de paladar violento
que, engolindo, a criatura
repara no meu sofrimento
co’a morte, lenta e segura.

JOANA
(Vestindo os filhos)
Eles pensam que a maré vai mas nunca volta
Até agora eles estavam comandando
o meu destino e eu fui, fui, fui recuando,
recolhendo fúrias. Hoje eu sou onda solta
e tão forte quanto eles me imaginam fraca.
Quando eles virem invertida a correnteza,
quero saber se eles resistem à surpresa,
quero ver como que eles reagem à ressaca.

(Tempo)

Meus filhos, vocês vão lá na solenidade,
digam à moça que a mamãe está contente
tanto assim que lhe preparou este presente
pra que ela prove, como prova de amizade.
Beijem seu pai, lhe desejem felicidade
co’a moça e voltem correndo, que eu e vocês
também vamos comemorar, sós, só nós três,
vamos mastigar um naco de eternidade.

BUARQUE, Chico e PONTES, Paulo. Gota D’Água. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira Ed., 1982, p.161.

7 de mar. de 2010

Inania Verba**

E ela chegou no seu vestido demasiadamente preto. Foi dela a nobreza de um primeiro gesto. Tocando meu braço, perguntou-me como andava a vida.

E eu queria saber dizer. Eu poderia, na verdade. Mas é que o mundo gira muito mais rápido agora, entende? E o que eu falo nesse agora, já não é mais o que eu falaria há um minuto. As estações não se sucedem; dentro da gente, elas se imbricam. Existe tanto a ser dito. Eu não gostaria de, simplesmente... Entende? Não é tão fácil assim amassar e amansar tudo isso num só peito sem sangrar, sem gritar, sem fugir. E eu não queria nem gritar, nem fugir. O mal que é bem, e não se sabe. Não é fácil, entende? E se a palavra mal cuidada escapa, e se o vento fecha olhos e ouvidos, e se ele leva tudo pra outra ponta da margem do sentido? É muito perigoso pensar em dizer. É preciso silêncio. Eu preciso de silêncio pra pensar, pra dizer. Mas, com você, há crianças e velhos rabugentos discutindo em cada canto da minha criação e, quem sabe... Entende? É como olhar a árvore (reta, força, cor e céu) e pensar na raiz: o real está além do que se vê. Eu precisava me perder pra não te perder, e nos perdia.

- Bem, bem... E a sua?
(por Filipe Couto)
*postado originalmente em www.asoutraspalavras.blogspot.com no dia 15 de dezembro de 2009.
*"Inania verba", em latim, significa "palavras inúteis" e é título, também, de um famoso poema do mestre Olavo Bilac.

6 de mar. de 2010

Conselhos de Polonius a Laertes, seu filho

Em Hamlet, de William Shakespeare (1564 - 1616):

"Ainda aqui, Laertes? Para bordo! O vento se acha a tergo de tua vela; já te reclamam. Vai com a minha bênção, e grava na memória estes preceitos:

Não dês língua aos teus próprios pensamentos, nem corpo aos que não forem convenientes.

Sê lhano (*simpático), mas evita abastardares-te (*corromper-se).

O amigo comprovado, prende-o firme no coração com vínculos de ferro, mas a mão não calejes com saudares a todo instante amigos novos.

Foge de entrar em briga; mas, brigando, acaso, faze o competidor temer-te sempre.

A todos, teu ouvido; a voz, a poucos; ouve opiniões, mas forma juízo próprio.

Conforme a bolsa, assim tenhas a roupa: sem fantasia; rica, mas discreta, que o traje às vezes o homem denuncia.

Não emprestes nem peças emprestado; que emprestar é perder dinheiro e amigo, e o oposto embota o fio à economia.

Mas, sobretudo, sê a ti próprio fiel; segue-se disso, como o dia à noite, que a ninguém poderás jamais ser falso."